Único inocentado no 8/1, morador de rua preso não simpatiza com Bolsonaro

Morador de rua, Geraldo Filipe da Silva, 27, não simpatiza com Jair Bolsonaro (PL) e não gosta dos bolsonaristas. Por ironia, ele passou 11 meses preso na Papuda com os invasores do 8 de janeiro.

O que aconteceu

Geraldo é o único caso de detento do 8/1 inocentado pelo STF. O julgamento foi encerrado na última sexta-feira, mas ele está em liberdade desde 25 de novembro.

Deu tudo errado para Geraldo em 8 de janeiro de 2023. Curioso com o barulho das bombas e dos helicópteros, foi ver o "pau quebrando" na praça dos Três Poderes.

Apanhou dos manifestantes golpistas que imaginaram que ele era um infiltrado da esquerda. Ele chegou ao local num momento tenso: a Polícia Militar tinha abandonado a apatia e começava a prender os invasores.

Geraldo Filipe não entende as medidas cautelares e já tirou a tornozeleira eletrônica
Geraldo Filipe não entende as medidas cautelares e já tirou a tornozeleira eletrônica Imagem: Felipe Pereira/UOL

Geraldo escapou da surra para as algemas. O morador de rua pulou algumas grades e deu de cara com a polícia. Tomou uma rasteira e recebeu voz de prisão ainda no chão.

O que ele não entende é como foram achar que uma pessoa descalça foi confundida com um infiltrado ou um golpista. Geraldo não estava de verde-amarelo, era andarilho havia três anos e seus pés estavam com feridas abertas.

Para piorar, uma rápida conversa denuncia os problemas cognitivos do morador de rua. Ele acha que seu cérebro é monitorado pelos equipamentos eletrônicos e satélites e seus pensamentos são transmitidos pelos rádios e aplicativos de música.

Eu não participava de grupos [no WhatsApp], não ia a manifestação e acampamentos. Eu ficava no Centro Pop [equipamento para pessoas vulneráveis] na Asa Sul. Não tinha envolvimento com os patriotas.
Geraldo Filipe da Silva, morador de rua preso no 8/1

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Convívio difícil

Geraldo conta que a primeira sensação na cadeia foi de isolamento. A direção da prisão separou os detentos por estado e andarilho não tem residência fixa. Os presos que estavam na mesma caravana andavam juntos, enquanto ele não conhecia ninguém.

O morador de rua ficou na cela A4 com pessoas de Rondônia e Paraná. O convívio com os bolsonaristas foi complicado. Considerado de esquerda e detido junto a manifestantes que tentaram derrubar Lula (PT), Geraldo foi hostilizado. Mas nas ruas vigora a lei do mais forte e ele sabia brigar.

A primeira confusão começou quando colocaram o dedo na cara do morador de rua. Ele avisou aos demais detentos que assistiam que a situação não ia virar briga porque respeitaria a idade avançada do dono do dedo. Mas usou a força para o indicador do oponente sair de perto de seu nariz.

As discussões reiteradas renderam a primeira passagem pela solitária. Não seria a única. Na segunda, e derradeira, ele já sabia que tinha direito a levar só escova de dentes, colher e caneca. Seria um mês sem banho de sol e com os pensamentos como única companhia. Por situações assim, Geraldo chorava na Papuda.

Como havia lido alguns livros na cadeia —estudou até a oitava série—, conta que teve uma epifania. Ele ficara sabendo do caso de Edward Snowden, funcionário da CIA que revelou um esquema global de espionagem por parte dos Estados Unidos. Na cabeça dele, estava explicado porque seus pensamentos viravam notícia de rádio.

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Me chamavam de infiltrado. A gente não consegue dormir com medo daqueles caras fazerem mal pra mim.
Geraldo Filipe da Silva

Geraldo Filipe lê as cartas que escreveu na cadeia e que sonha ver publicadas num livro
Geraldo Filipe lê as cartas que escreveu na cadeia e que sonha ver publicadas num livro Imagem: Felipe Pereira/UOL

O caso de Geraldo

O morador de rua ficou na cadeia até 25 de novembro do ano passado. Ele acha que alguém precisa pagar financeiramente pelos 11 meses na cadeia.

Advogada diz que Geraldo quer processar o Estado. Taniéli Telles de Camargo afirma que ele está ciente de que tem direito a uma indenização, porém sairá do caso. "Minha missão se encerra com a absolvição dele", declarou.

Geraldo conta que nunca foi filiado a partido político ou trabalhou em campanha. Ele também reclama que não pertence ao PCC, acusação que era feita todos os dias pelos demais presos no 8 de janeiro.

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O comportamento dele na Papuda criou inimizades. Na saída de cada detento chamado de "patriota", há uma festa na porta da cadeia. Ele não teve esta cerimônia. Houve um bolo levado pela sua advogada e mais três pessoas para abraçá-lo.

Em liberdade, o morador de rua continuou sendo difamado. Bolsonaristas entram em seu perfil no Instagram e Facebook para chamá-lo de comunista, infiltrado e esquerdista.

As redes sociais são um tópico que preocupa muito a advogada Taniéli. A liberação do cliente da cadeia foi condicionada a não acessar as redes sociais e nem chegar perto da praça dos Três Poderes.

Mas o cliente não consegue compreender as medidas cautelares, quanto mais obedecê-las. Na semana passada, quando seu caso seria julgado, ele postou uma foto perto do Congresso. Também já arrancou a tornozeleira eletrônica.

Geraldo Filipe procura o documento de 2021 em que consta que não tem antecedentes criminais
Geraldo Filipe procura o documento de 2021 em que consta que não tem antecedentes criminais Imagem: Felipe Pereira/UOL

Quem é Geraldo

O morador de rua nasceu em Pesqueira (PE), passou por Fortaleza e mudou para Ceilândia (DF). Aprendeu a primeira profissão com 16 anos, quando um conhecido o ensinou a ser serralheiro.

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Ele chegou a casar e tem um filho de oito anos. Mas não convive com o garoto porque não se dá bem com a ex. Geraldo contou que ela reclama de nunca receber pensão e que sustenta o filho sozinha.

Mas a vida dele desabou por causa de um familiar de sangue. O morador de rua disse que a mãe pediu uma intervenção porque o irmão mais velho estava afundado no crack. Ele obedeceu e tentou ajudar.

Geraldo conta que, em 2 de abril de 2021, criminosos invadiram sua casa e quebraram tudo. A violência fez com que ele se mudasse para Arcoverde (PE), cidade onde se criou. Ele garante que não tem passagem pela polícia e exibe um atestado de "nada consta" de 2021. Mas a vida saiu do eixo.

Ele foi trabalhar de pedreiro em Belo Horizonte e só enfrentou problemas. Brigas com colegas de profissão fizeram achar que seria uma boa virar andarilho. A primeira caminhada foi até o Ceará. Depois de uma temporada em Pernambuco e Minas Gerais, ele voltou a Brasília.

Chegou à capital brasileira em novembro de 2022. Àquela altura, bolsonaristas acampados em frente ao quartel-general do Exército organizavam uma manifestação para o feriado da Proclamação da República. Alheio a tudo isso, Geraldo se preocupava em estar no Centro Pop no começo da noite, quando era servida a janta.

Foi assim até 8 de janeiro de 2023, quando ele deixou a mesa e foi ver o "agito" na Esplanada dos Ministérios. O dia mudou os rumos do Brasil e de Geraldo. Para não dizer que nada foi absorvido dos bolsonaristas, ele acha que a rede que transforma seus pensamentos em boletins de rádio é operada pelos comunistas.

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Geraldo vira argumento dos bolsonaristas

Geraldo foi defendido pela advogada Taniéli Telles de Camargo. Ela é de Jaraguá do Sul (SC) e defende sem cobrar nada 140 pessoas presas pela invasão às sedes dos Três Poderes.

O caso de Geraldo será usado para defender os outros presos. Taniéli diz que a situação caracteriza a falta de individualização das acusações. A advogada argumenta que prender um morador de rua torna evidente que a investigação não descobriu o papel de cada preso pelo 8 de janeiro. Ela afirma que o STF decidiu fazer uma acusação genérica sem se preocupar com os atos de cada suspeito.

Taniéli reclama que é muito difícil defender um cliente quando não é descrito seu papel num suposto crime. Além disso, a advogada diz que é errado do ponto de vista jurídico fazer acusações dando "control C e control V" [copia e cola].

STF condenou todos os outros acusados. As penas vão de 11 a 17 anos de prisão. Até o momento, o STF já puniu 116 envolvidos nos ataques golpistas. Os réus estão sendo julgados em lotes desde setembro do ano passado.

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